Entre a Lei e a Vida: A Inefetividade das Políticas Públicas para Pessoas com Autismo e TDAH no Brasil
Reflexão jurídica e social sobre a lacuna entre o que está garantido na legislação brasileira e o que efetivamente é oferecido a crianças com autismo e TDAH
O Brasil possui um dos arcabouços normativos mais avançados do mundo no que tange à proteção dos direitos das pessoas com deficiência. A Constituição Federal de 1988, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (incorporada ao ordenamento com status constitucional pelo Decreto nº 6.949/2009), a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) e, no caso específico das pessoas com Transtorno do Espectro Autista, a Lei nº 12.764/2012, formam uma sólida estrutura legal que reconhece direitos à vida, saúde, educação, trabalho, acessibilidade, participação social e dignidade.
No entanto, a distância entre o texto da lei e a realidade vivida por milhões de famílias é abissal. Essa lacuna, marcada por negligência institucional, ausência de planejamento intersetorial e falta de vontade política, revela que o maior desafio da pessoa com deficiência no Brasil não é a inexistência de direitos, mas sim a sua efetivação.
Análise Jurídica: Direito Reconhecido, Direito Negado
A Constituição Federal, em seu artigo 6º, consagra a saúde e a educação como direitos sociais. O artigo 196 assegura que a saúde é “direito de todos e dever do Estado”, enquanto o artigo 205 faz o mesmo com a educação. Já o artigo 227 impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade absoluta, os direitos da criança e do adolescente.
A Lei Brasileira de Inclusão reforça esses mandamentos, prevendo, por exemplo, no artigo 28, que é obrigatória a oferta de educação inclusiva em todos os níveis e etapas. A Lei nº 12.764/2012, por sua vez, reconhece a pessoa com TEA como pessoa com deficiência para todos os efeitos legais.
No campo da saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), regido pela Lei nº 8.080/1990, deve garantir o acesso integral, universal e igualitário a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
Todavia, a inércia estatal na implementação concreta dessas normas configura verdadeira violação de direitos fundamentais e pode ser juridicamente interpretada como ato omissivo inconstitucional. A jurisprudência pátria, inclusive, já reconhece que, diante da omissão do Estado, cabe ao Judiciário garantir o cumprimento dos direitos assegurados em lei, por meio de políticas públicas judicialmente exigíveis (como mandado de segurança, ações civis públicas, ações individuais etc.).
Do ponto de vista social, a negligência estatal aprofunda desigualdades históricas. Famílias de baixa renda são as mais impactadas, pois não têm acesso a atendimento particular e dependem exclusivamente do SUS e da rede pública de ensino. São elas que enfrentam filas intermináveis por laudos, consultas com especialistas, terapias, medicamentos — e, muitas vezes, sequer conseguem uma negativa por escrito, sendo forçadas a aceitar a omissão.
Na educação, o cenário não é diferente. Embora a matrícula de crianças com deficiência seja obrigatória, muitas escolas “aceitam” o aluno, mas não o incluem”. Faltam acompanhantes especializados, faltam adaptações curriculares, e falta, sobretudo, formação dos professores para lidar com a neurodiversidade em sala de aula. Isso gera situações de exclusão institucionalizada, onde a criança permanece fisicamente presente, mas pedagogicamente ausente.
Análise Social: Invisibilidade, Sobrecarga e Exclusão Silenciosa
Além disso, a sobrecarga recai sobre as famílias — especialmente sobre as mães — que se tornam verdadeiras gestoras de políticas públicas falhas. São elas que articulam terapeutas, enfrentam burocracias, lidam com resistências escolares e ainda sustentam o bem-estar emocional do núcleo familiar, muitas vezes à custa da própria saúde mental.
Análise Política: Normas sem Financiamento e Retórica sem Compromisso
As políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência sofrem de um mal crônico no Brasil: a descontinuidade e a falta de financiamento. Projetos promissores são anunciados sem orçamento; leis são aprovadas sem regulamentação; programas são interrompidos com mudanças de governo. Essa instabilidade compromete a consolidação de redes de atenção, formação de equipes multiprofissionais e estruturação de escolas inclusivas.
A ausência de indicadores públicos confiáveis e de controle social efetivo também contribui para a invisibilidade das demandas e para a baixa qualidade dos serviços ofertados. Em um país marcado por desigualdades regionais, crianças autistas ou com TDAH do Norte ou Nordeste tendem a ter ainda menos acesso a políticas públicas do que aquelas do Sudeste ou Sul.
Para reverter esse quadro, é preciso que o tema da deficiência seja tratado como pauta prioritária de Estado, e não apenas como bandeira eventual de governos. A responsabilidade é tripartite: União, Estados e Municípios devem atuar de forma coordenada, com base em dados, evidências científicas e escuta ativa da população afetada.
A luta pelos direitos das pessoas com deficiência no Brasil não pode se limitar ao reconhecimento formal desses direitos. É preciso que haja um compromisso coletivo pela sua efetivação concreta, com políticas públicas estruturadas, financiadas, avaliadas e fiscalizadas.
Conclusão
Mais do que cumprir a lei, o Estado precisa cumprir sua função ética de assegurar dignidade, equidade e justiça social. A mudança começa com a informação, mas exige ação — das famílias, dos profissionais, da sociedade civil e do poder público.
Se é verdade que já caminhamos bastante, é igualmente verdade que ainda temos um longo caminho a percorrer. Mas, com consciência, união e coragem, esse caminho pode — e deve — ser trilhado rumo à inclusão real e plena.
É preciso transformar leis em práticas efetivas. O Poder Público deve garantir políticas públicas estruturadas; o Judiciário, assegurar a aplicação da lei com celeridade; a advocacia, atuar com estratégia e informação; e a sociedade, cobrar, fiscalizar e participar ativamente. A inclusão real exige compromisso coletivo e efetivo!
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Por Juliana Matos, advogada especialista em Direitos da Pessoa com Autismo e Tdah.
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